Quinta feira, 25 de fevereiro de 2010...eu (Ronaldo) e Fábio partimos com um carro alugado pro Vale do Iguape, mais precisamente pra comunidade quilombola do Kaonge Dendê, onde vamos começar um ciclo de oficinas teatrais dentro do projeto Memória carne viva...1hora e 45 minutos separam Salvador de um outro tempo, de uma epóca outra, de um Brasil ancestral, onde podemos entar em contato com o que foi a formação e deformação da nação barsileira.
Chegamos na estrada de terra que nos leva a comunidade e o temporal desabou...águas, raios e trovoadas...Eparrei, Iansã, nos receba de braços abertos, nos abra as portas do tempo.
A seguir, narro a primeira semana de atividades com nossos 'alunos', que mais nos ensinam e assim nos aprendemos e apreendemos ambos:
Primeiro dia: assistimos juntos o filme Narradores de javé...apostamos na história de uma comunidade que vai acabar e precisar transformar a oralidade de suas histórias em livro pra poder ter relevância..achamos pertinente e de algum modo intuímos que seria um estopim pra uma boa provocação inicial que serviria pra mapearmos e levantarmos as questões que dizem respeito à comunidade...e achavámos que eles se identificariam...tiro no alvo!!!..a sessão foi deliciosa, assistida por uma pláteia atenta, entre risos, indignações e espelhamentos...
Após o filme, lançamos a provocação: o lugar onde você vive vai acabar, e vc só pode levar na bagagem 4 ítens que seriam: uma memória individual e uma memória coletiva ( que chamamos de memória de dentro e de fora, por sugestão do Fábio), um objeto e uma atividade desse lugar de nascença. "Pensem e tragam pro segundo dia de encontro essa bagagem", dissemos, e inclusive pedimos pra que a própria bagagem viesse presentificada, na forma que eles quisessem: malas, trouxas, sacolas, mochilas, bolsas....
Segundo dia: começamos com o ritual de sempre: a reza e a música (linda, linda!!!..vamos pedir permissão para postá-la semana que vem...), depois fizemos um aquecimento de concentração, trabalhando respiração, torções, acordando o corpo e se conscientizando dele..trabalhamos na terra, embaixo de uma mangueira secular, ao lado dos cachorros, galinhas e cabras...o teatro pode chegar em qualquer lugar...eles embarcam concentrados, as crianças principalmente...meninos e meninas de 9, 10, 11 anos com uma articulação e disponibilidade e atenção desconcertantes...
em seguida, dinâmicas conduzidas pelo Fábio e por mim: um pega-pega trabalhando memória, atenção e concentração, uma diagonal de comandos de movimentos e um jogo de gato-rato...tudo muito lúdico e ao mesmo tempo em que eles se divertem, vamos pontuando, mostrando os conceitos, introduzindo o teatro na vida...
e então partimos para a parte que chamamos de propriamente expressiva do dia: construírmos juntos a cena da partida do povoado de origem para o novo lugar, levando as suas bagagens: e aí, tudo é surpreendente, tudo é emocionante, porque eles se relacionam com o teatro de uma maneira livre , verdadeira e intensa: eles partiam em massa, criando uma bela imagem de multidão com suas malas e bagagens...e espontanemente começaram a cantar uma canção para essa travessia....Fábio os esperava no novo lugar, e os recebia como um 'personagem de boas vindas', estimulando-os a habitar esse novo lugar com suas bagagens cheias de memórias de um mundo antigo do qual faziam parte...e aí, um a um eles abriam suas humildes malas, cheias de uma riqueza que não se pode medir, de um tesouro inestimável: as suas humanidades...e as histórias pulavam, e assim iam fecundando a terra...
Muito emocionante, belo e intenso.
ResponderExcluirMe arrepiei.
Parabéns